Já imaginou como seria uma obra
surrealista em forma de música? É exatamente essa sensação transmitida nas
canções do novo álbum de Father John Misty, Pure
Comedy. De forma bem crua e com o seu humor negro de sempre, o cantor bate
de frente com a cultura pop mainstream e coloca em cheque os valores do
capitalismo e da indústria do entretenimento, num contrassenso lírico
deslumbrante e ideias criativas que vão te fazer gritar a todo momento "ISSO É TÃO BLACK MIRROR!".
Talvez você não esteja
completamente alerta, mas Josh Tillman, o cara por trás do apelido Father John
Misty, está na indústria por mais tempo que a gente imagina. Logo em 2003, o
cantor lançou o seu primeiro disco sob o nome de J. Tillman, e ele ficou nessa
por um bom tempo, fazendo mais sete álbuns com seu nome próprio. Em 2011,
porém, ele ganhou maior notoriedade por ser escalado para a formação do Fleet
Foxes como baterista da banda. Foi só em 2012, no entanto, que Tillman lançou
seu alter ego Father John Misty, e cada material lançado neste projeto causou muito debate
e controvérsias mundo afora. Todavia, nenhum dos dois únicos discos anteriores
de Misty se iguala à petulância ambiciosa e criativa de seu mais recente
material, Pure Comedy.
O Fear Fun, álbum de estreia do Father John Misty, já trouxe aquele
estranhamento bem característico do artista, com suas letras que faziam alusão aos
efeitos de uma ressaca pós bebedeira e uso de entorpecentes. O debute do cantor
já mostrou o lado mais criativo de Tillman, proporcionando um mundo paralelo
mórbido e iluminado ao mesmo tempo. Já no segundo disco, o I Love You, Honeybear, muito bem aclamado pela crítica, Misty expõe
seu lado mais amoroso, porém sem o sentimentalismo clichê do amor, mas
sim com todo a brutalidade do mesmo, trazendo um aspecto ainda mais cômico para
sua persona. Pode-se dizer que os dois primeiros discos foram o que levou o cantor para o seu terceiro LP, o Pure
Comedy, que é o melhor de sua carreira até agora. Neste novo trabalho, o cantor se elevou num nível de criatividade,
estranhamento e honestidade dificilmente explorado tão bem por qualquer outro
artista dessa geração.
Father John Misty esbanja ousadia
em seu som do começo ao fim no novo álbum, inovando e se renovando em tudo, do
instrumental às letras atípicas. Com muita maturidade, o cantor encara o mundo
com seu estilo folk acústico de sempre, porém diferente dos outros álbuns,
agora com uma implementação mais sofisticada: o piano, que possui uma presença
bem mais significativa neste material do que nos seus antecessores, o
aproximando mais dos grandes nomes que seguem a linha do piano rock, como Elton
John e Elliott Smith. Além disso, Misty traz mais classe para o seu som ao
colocar de leve o pé no campo do jazz experimental, explorando instrumentos de
sopro que não tinham tanto destaque nos outros discos. Sem contar ainda o coro, quase que gospel, no final de “Ballad of the Dying Man”, que
traz todo o aspecto gracioso que talvez faltava antes em algumas produções
anteriores do artista. Father John Misty acertou em cheio em sair dos clichês
do violão folk e expandir os horizontes com outros caminhos sonoros.
Josh Tillman sofre de depressão
severa e ansiedade a ponto de ter que se medicar com LSD, e a forma como isso
assombra o cantor nunca foi tão bem abordada como em “Pure Comedy”, obtendo como
uma resultado uma imersão completa dos seus valores intrínsecos sobre diversos
assuntos mundanos. Como em nenhum outro álbum, Misty reflete sobre a vida de
forma geral, viajando pelos absurdos da existência humana e da mecanização da
mesma, que o leva ao seu repúdio à indústria cultural contemporânea. De forma
muito peculiar, o cantor critica a tecnologia, política, o indivíduo no
coletivo e forma de produzir cultura atualmente, expondo, de forma irônica e cínica, todos os lados mais
grotescos da contemporaneidade.
A faixa que abre o álbum e também
dá o título ao mesmo já traz o panorama geral do que podemos esperar pela
frente, dando um grande pontapé com altas críticas ao consumismo, à falta de
liberdade contemporânea e à própria religião, que é massacrada com o verso “And
how’s this for irony, their idea of being free is a prison of beliefs that they
never ever have to leave”. Daí pra frente o cantor pega o embalo do seriado Black Mirror, e destroça a tecnologia em
“Total Entertainment Forever”, imaginando um futuro com uma máquina pornô de VR
da própria Taylor Swift. E já é logo com esse choque que percebemos a unicidade
ilimitada e destemida que Tillman tem durante suas composições, e realmente não
há nada tão atraente em um artista como esse flerte com o inesperado,
provocando até o seu próprio público mais jovem, rotulado pelo cantor como “hipsters”, na
canção “Ballad of the Dying Man”.
Mesmo com faixas de alta
qualidade no disco, “Leaving LA” é a que mais se destaca, com 13 minutos que
dão luz ao cérebro e aos ouvidos de uma forma transcendental. Como faz no resto do álbum,
Father John Misty começa a criticar a superficialidade de Los Angeles, porém em
questão de minutos a música se transforma em uma viagem de honestidade bruta
pelos horizontes mais introspectivos do cantor, onde ele despeja
vulnerabilidade e complexidade pessoal sobre ele mesmo e seu som. Outro grande
momento glorioso acontece durante a penúltima faixa, “So I’m Growing Old on
Magic Mountain” – que possui referência à alegoria filosófica de 1924 de Thomas
Mann, The Magic Mountain –, quando a
voz do cantor some para dar espaço a um instrumental magnífico com
um belo encontro entre guitarras distorcidas e piano, fazendo deste momento
um dos mais tocantes do Pure Comedy.
Apesar de seu posicionamento
secular ao longo do álbum, o cantor não é totalmente pessimista quanto ao
futuro, depositando um pouco de esperança na sociedade na música “Birdie”, que
sugere que todos possam voar tão alto quanto aos pássaros caso a união seja promovida para
combater os malefícios atuais. Essa ideia é transformada em um mix de
inspiração e positividade no desfecho do álbum, em que Tillman passa a mensagem
de aproveitar cada coisa pequena da vida, aconselhando com que todos vivam cada
momento intensamente, porque essa é a chave para um mundo melhor. Por soar tão
utópico, isso pode até ser parte do caráter irônico do personagem do cantor,
porém nada muda o aspecto encorajador trazido com a frase “There’s Nothing To Fear” repetida
constantemente no final da última música. Este encerramento reafirma o que já se sabe: Father
John Misty é um dos músicos mais poéticos e geniais do nosso cenário atual.
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