Se preparando para lançar seu álbum de estreia, o artista brasiliense Gaê promete surpreender a cena da nova MPB com uma musicalidade tênue e a importante abordagem do amor LGBT sem amarras, que já nos emocionou no single "Onde Está A Estrela?", lançado recentemente acompanhado da voz e viola do cantor mineiro Bemti.
"Para quantas pessoas, interpretar um personagem a partir de uma obra como LGBT não seria uma ofensa? Quantas vezes em adaptações uma atriz negra não causou revolta nas pessoas que haviam imaginado essa personagem como sendo branca?", refletiu Gaê em entrevista exclusiva com o Keeping Track.
Os discursos das minorias na música estão ganhando cada vez mais voz em questão de representatividade, mas ainda há uma separação nítida entre o universo heteronormativo e o LGBT. Muitos avanços foram alcançados nos últimos anos, mas com "Onde Está A Estrela?", Gaê conseguiu propor a união dos dois mundos de forma natural, genuína e sensível.
Para quem não sabe, a canção foi originalmente escrita pelo pai do músico, Antônio Umberto de Souza Jr, mas foi interpretada e ressignificada por Gaê, a trazendo um pouco mais próxima de seu contexto. A produção ganhou vida no clipe filmado em uma fazenda no interior de São Paulo, que serve de cenário para a história de dois homens que precisam esconder seu amor no início do século XIX.
"Quando penso em amor, penso no amor entre dois homens, primeiro, porque essa é a minha realidade. Isso é natural para mim. O que me foi extraordinário, no entanto, é ver que eu posso fazer isso, inclusive visualmente, em um clipe em que dois homens trocam afetos, e ser celebrado pelo meu pai. É um homem hétero percebendo o amor que ele sente representado numa relação homossexual. Isso é muito especial.", conta Gaê sobre ressignificar a composição de seu pai para seu contexto social.
E para ilustrar a resistência e esforço de um amor que vence barreiras muito a frente de seu tempo, Gaê escolheu o amigo mineiro Bemti, que adicionou um brilho admirável à canção: "Na produção, de longe minha coisa favorita foi a interação com o Bemti. Somos amigos há algum tempo já, desde que ele lançou o primeiro single "Gostar de Quem" e ele foi o ponto de partida para eu começar a minha carreira na música também. A entrega dele à produção (desde a concepção da música até o clipe e o lançamento de tudo isso) é pra mim o ponto de chegada de uma jornada muito importante. E que venha a próxima corrida!", revela o artista.
Aproveitando o lançamento, o artista fez uma parceria com a ONG Eternamente Sou para produzir um webdocumentário com entrevistas que traçam paralelos entre juventudes LGBT de diferentes épocas no Brasil e falar sobre a afetividade dos idosos LGBT.
"Eu sabia que queria falar de amor na velhice, ok. Mas, ao mesmo tempo, as minhas referências, por mais especiais que fossem, eram de casais heterossexuais. Daí a procura pela ONG Eternamente Sou, para escutar idosos LGBT que pudessem complementar ao exemplo de longevidade que enxergo em meus avós.", disse Gaê. E o mais interessante é quando paramos para refletir entre os contrates entre gerações que "Onde Está A Estrela?" e o documentário deixam claro. "Fica muito evidente como contexto em que vivemos molda a nossa afetividade - as semelhanças e disparidades nos relatos de cada um estavam intimamente ligadas a questões histórico-sociais. Fico me perguntando que afetividades, então, estamos desenvolvendo hoje? Não, não sei a resposta...", finaliza.
A forma poética de cunho social que Gaê começa a sua carreira é definitivamente uma preciosidade incontestável, o que nos deixa ainda mais ansiosos para os próximos passos do músico, principalmente o álbum de estreia, que está sendo preparado desde outubro de 2019 para destacar a versatilidade artística de Gaê, indo do samba ao folk, de vinhetas acapella a trechos de palavra falada e sons ambientes. A produção do mesmo foi pausada devido ao surto do coronavírus, mas o músico já nos adiantou alguns detalhes:
"Deu tempo de gravar uma música só, que é o próximo single "Geladeira"; uma parceria com o escritor Daniel Bovolento. Será um álbum feito com muito carinho - tive a sorte (pra não dizer o cuidado) de encontrar parceiros que realmente abraçaram as canções e as fizeram deles também. Falo do diretor artístico, Rafa da Mata, e do produtor musical, Cauê Lemes (que produziu todos os meus singles até agora)", revela Gaê.
"Cresci angustiado por querer tudo, querer muito. Queria ser ator, mas queria fazer planilhas, mas queria pintar um quadro, mas queria sentar de jaleco em um laboratório e cultivar bactérias em ágar-ágar (não são exemplos aleatórios, é sério!). Tô muito feliz de poder ser múltiplo ao realizar um trabalho tão coeso como o que estamos fazendo. Nos dedicamos muito a alinhavar uma dramaturgia forte para o disco e era algo que eu queria muito desde o começo.", finaliza ele.
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