Titãs e a crônica eufórica de seu novo disco "Olho Furta-Cor"
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Com uma sensibilidade humanizada, banhada por fúria, bom humor e momentos acolhedores; os Titãs chegam a arrepiar com o dom atemporal de refletir o tempo atual, mesmo após quarenta anos de sua estreia. No novo disco de inéditas, Olho Furta-Cor, o trio une o que sabe fazer de melhor em uma só obra. Aqui Branco Mello, Sérgio Britto e Tony Bellotto mostram por que são os veteranos do rock nacional mais respeitados.
Em entrevista para o Keeping Track, Sérgio Britto refletiu sobre este momento tão importante para a banda. "A nossa geração do rock tá comemorando 40 anos de carreira, né? E esse ano coincidiu com a volta aos shows após a pandemia, que foi um momento de uma certa euforia. Acho que teve uma revalorização dessas bandas, do legado que elas deixaram, dos repertórios que elas deixaram, e a gente, obviamente, imaginou de fazer uma comemoração. Mas achamos que a melhor maneira de comemorar seria fazendo um disco com coisas novas, porque sempre foi o que nos moveu", refletiu ele.
Diferente de muitas bandas que só permanecem juntas por motivos burocráticos do business, Titãs continua na estrada pela paixão genuína que corre em suas veias. E estar se atualizando com novos trabalhos é, sem dúvidas, uma das prioridades do grupo.
"A gente sempre se esforça pra ter alguma novidade, comentar as coisas que estão acontecendo, que façam sentido pra nós e que reafirmem a nossa química, o motivo que a gente tá junto... E obviamente que as vezes isso funciona melhor e às vezes nem tão bem. Mas dessa vez foi muito bom. Foi um disco muito feliz da nossa parte, porque a gente ficou muito satisfeito com o resultado. Ele, como todos os nossos discos, faz um pouco a crônica do nosso tempo, fala sobre assuntos que a gente acha pertinente, coisas mais pessoais. Tem uma diversidade que sempre foi uma marca da banda, né", refletiu Sérgio Britto.
Durante a audição do disco, é nítido o cuidado do grupo em manter o padrão que toda a discografia da banda teve durante a carreira. Durante nossa conversa, ele revelou que mesmo depois de anos no mercado, ainda é um processo desafiador sentar para produzir um projeto inédito. Mas a ambientação experimentada em Olho Furta-Cor dá a entender que é tudo muito natural. Com uma autenticidade exemplar, este disco veio para mostrar que os Titãs continuam tirando de letra. E parte desse encanto se dá, com certeza, a partir da espontaneidade da banda em tratar os tempos atuais com sagacidade. E foi algo que fluiu naturalmente. Está enraizado no DNA deles serem cronistas de seu tempo.
"Nunca é algo que planejamos. Só acontece. Nem em um disco como Cabeça Dinossauro, que parece premeditado, e que fala de todas as instituições... Aquilo não foi premeditado. A gente foi fazendo e, a medida que foi fazendo, foi percebendo uma unidade. No caso desse disco de hoje, a gente fala de temas óbvios: como em 'Caos', 'Apocalipse Só', a questão do isolamento em 'Papai e Mamãe', do desmatamento... Também em 'Há De Ser Assim', falamos 'A cura dos outros vai salvar você', uma alusão óbvia a essa questão da vacinação... Tudo isso tem muito a ver com o nosso tempo, mas a gente, na verdade, sentiu a necessidade de falar sobre essas coisas e elas foram aparecendo e se conectando. Mas no meio disso tudo, a gente também fez questão de manter coisas como, por exemplo, aquela música "O Melhor Amigo do Cão", que fala sobre a relação do Branco com os os pets dele, então ele tem esse olhar um pouco diversificado e particular que sempre tivemos", contou Sérgio.
Inclusive, entre as músicas citadas acima, está a faixa "Apocalipse Só", uma das mais impressionantes do disco e que abre o tracklist com cantos indígenas alertando sobre a destruição ambiental e lamentando o apocalipse. Todo o desrespeito e devastação à Amazônia e seus povos são abordados aqui de um jeito muito impactante. Tudo flui de forma muito espontânea e surpreendente.
Outro destaque do álbum é que pela primeira vez em quarenta anos, o Titãs, como banda paulista, fala da capital em que a banda ganhou holofotes. Tudo graças à inspiração do poema "São Paulo", do Haroldo de Campos, que rendeu duas faixas no disco: "São Paulo 1" e "São Paulo 3". Nas palavras do próprio Sérgio, uma delas é mais noturna, mais lisérgica, e outraé mais nervosa, mais típica de cidade grande. 100 anos da Semana de Arte de 22. 40 anos de Titãs. 200 anos de independência do Brasil. Essas datas marcantes que estão sendo celebradas esse ano ganham cores muito especiais neste novo projeto. "Esse poema foi uma coisa que deu vontade de falar assim 'Poxa, chegou a hora da gente falar explicitamente sobre a cidade que a gente mora, uma cidade cheia de imigrantes, cheia de misturas...' É um liquidificador. Então, acho que também casou bem com essa temática toda do disco", completou ele.
E a comemoração dos 40 anos de rock da década de 80 foi muito além do que a gente imaginava. Teve música composta por Rita Lee especialmente para os Titãs. E também teve Titãs fazendo música especial em homenagem a Raul Seixas. Essa primeira, foi a música de trabalho intitulada "Caos", feita por Rita Lee, com seu humor e leveza, ao lado de Roberto Carvalho e Beto Lee. "Eu canto a música, então resolvi não pensar muito no peso que isso tem. Pensei 'será que eu vou cantar bem?', mas eu decidi esquecer tudo e fiz do meu jeito. Mas a música é realmente muito Rita Lee, no sentido de que tem esse deboche dela, mas sem deixar de fazer uma crítica ácida ao momento que estamos vivendo. Por isso que esse disco tem um lado de celebração", disse Sérgio Britto.
Já a música feita para Raul, a proposta é ainda mais inusitada. A faixa brinca com o fato de que Raul Seixas sempre dizia que Luiz Gonzaga e Elvis Presley são farinha do mesmo continente musical. Foi uma faixa que demorou mais tempo a ser feita. Sérgio Britto tentou finalizá-la anos atrás, mas foi só agora que ela chegou a ficar completa, e não faltou rockabilly e comparações muito inteligentes no resultado final. "Eu fui desdobrando essas semelhanças que tem ali entre o nordeste do Brasil e o sul dos Estados Unidos. Fui fazendo todas as analogias possíveis, e enquanto você vai fazendo, você vê que elas são cabíveis, apesar de algumas serem até esdrúxulas. O Mississipi é conhecido como "Old Man River" e o Rio São Francisco aqui é conhecido como "Velho Chico", então eu comecei a estabelecer todas as analogias possíveis e eu acho que a música ficou bem rica", completou Sérgio.
Em uma entrega que mostra o lado mais selvagem e audacioso da raíz dos Titãs, Olho Furta-Cor pulsa entre a fúria amorosa e o amor furioso. Contrasta entre o ácido e o acolhedor. Uma verdadeira obra de arte contemporânea que não só reflete seus tempos, mas o legado de uma das mais importantes bandas do rock nacional. E pra você que vai dar seu play agora, Sérgio Britto deixa o recado: "Limpa a cabeça e finge que você nunca ouviu falar dessa banda. Ouve e vê se você gosta.".
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